[Reportagem de ação] O espaço que as ideias ocupam
Entram pacificamente no Departamento de Ciência de Computadores da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto às sete da tarde de quinta-feira, dia 16 de maio. São cerca de 70 estudantes e membros da sociedade civil.
Instalam-se junto ao átrio do edifício. Trazem com eles bandeiras, tendas e sacos cama. Depois dos protestos dos estudantes em Lisboa e em vários pontos da Europa e do mundo, já se adivinha o que vão fazer. Do mesmo parece desconfiar o segurança do departamento, que segue a multidão e pergunta o que está a acontecer.
O grupo vem preparado para ficar. Uma das mesas é destinada à comida. Muito pão, húmus para barrar, fruta, bolachas e sumos. Trazem comida quente em recipientes. Não sabem por quanto tempo estarão a ocupar o espaço, e têm mantimentos para todos.
A “Okupa pela Palestina”, como declaram numa faixa de pano branco. Um movimento de protesto organizado ontem durante uma assembleia popular organizada pelo coletivo “Estudantes do Porto pela Defesa da Palestina”.
Joana Bernardes é estudante da Faculdade de Belas Artes e uma das ativistas presentes. Explica porque escolheram este espaço para o protesto. “Estamos agora na FCUP porque na nossa carta aberta que foi apresentada na reitoria no dia 8 de maio apresentamos ligações que encontramos da UP com várias entidades israelitas. Podendo dar um exemplo, temos o Instituto de Biologia Molecular e Celular que tem projetos como o AgroServ e o ISIDORe, em que estão envolvidas instituições que apoiam diretamente as forças militares de Israel.” Quanto às reivindicações do grupo, Joana acrescenta que querem “que a UP condene oficialmente o genocídio em curso na Palestina” e que esta deve “construir caminhos para um cessar-fogo imediato e para a descolonização da Palestina”.
Mais pessoas se juntam ao grupo. Alguns trazem amigos, outros estão sozinhos. A convivência começa tímida, mas rapidamente se unem em conversas dinâmicas, com o entusiasmo de quem está a agir por algo em comum.
Vão petiscando à volta da mesa dos mantimentos. Os couscous com legumes são os primeiros a acabar.
Entretanto, alguém pousou vários livros numa mesa que havia livre, para que haja com o que passar o tempo.
Forma-se uma roda, sentando-se no chão, para a primeira assembleia geral da ocupação. Nela, votam-se as decisões importantes para esta noite. O que fazer se a polícia chegar? Como gerir a logística de manter o grupo seguro, alimentado e quente? Como chamar a atenção dos meios de comunicação social e da direção da instituição de ensino?
Fica decidido que se vão formar grupos de trabalho para tratar destas questões, e que se irá redigir um comunicado de imprensa com as reivindicações, as quais “exigem que a UP rompa imediatamente todas as relações que mantém com instituições e empresas israelitas e que condene oficialmente o atual genocídio na Palestina”.
Comunicado enviado, e põem-se mãos à obra. Há quatro grupos de trabalho: o grupo de logística, que fica encarregue de fazer o inventário dos mantimentos e de agilizar o apoio externo à ocupação; o grupo de segurança, que fará rondas para garantir que toda a gente está bem; o grupo de cuidados trata de dar calor humano a quem ali está, criando conversas e garantindo que ninguém se sente só ou ansioso; o grupo de agitadores delineia o programa para o dia seguinte, com várias palestras, rodas de conversa e momentos de protesto.
Enquanto tudo isto acontece, há vários estudantes no edifício, que serve de local de estudo para os mesmos. Entre eles, membros da Associação de Estudantes da FCUP, que não quiseram prestar declarações.
O segurança do DCC diz que os ativistas não podem continuar ali porque estão a incomodar o normal funcionamento da instituição. A ocupação mantém-se, reduzindo o volume das conversas.
Lá fora, no jardim, um pequeno grupo de estudantes faz uma vigília, e vão informando os que estão no interior caso chegue algum membro da direção. Estão estendidas várias faixas brancas no chão, com velas à volta. Nelas podem ler-se mensagens como “Não aceitamos menos do que a liberdade”, “Solidariedade proletária por uma Palestina livre”, “Palestina resiste contra o apartheid sionista”, “O feminismo não aceita o sionismo” e “Israel não é uma democracia. Israel é um país terrorista. Desde a sua fundação, Israel desafia o direito internacional e mente sobre a sua visão à comunidade internacional que hipocritamente se reduz a uma complacência desumana.”
São 22h50. O segurança serve como mediador de um ultimato comunicado pela direção. Ou o grupo sai do edifício nos próximos 10 minutos, ou as forças policiais são chamadas.
É convocada uma assembleia de emergência, em que é aprovado por maioria que a ocupação se iria transferir para o exterior e ficaria no jardim.
O grupo pega em todo o material e mantimentos e instala-se lá fora, junto à entrada do departamento. Sente-se o frio da noite, chove e cheira a terra molhada. Montam-se várias tendas e cobrem-se os mantimentos com plásticos grandes, para que nada se estrague.
Mesmo tendo havido uma cedência por parte dos ativistas, o espírito não desanimou. Ligam uma coluna de som, onde se houve a música “Hind’s Hall” do rapper Macklemore, e algumas músicas palestinianas.
Hoje ficam 32 pessoas a pernoitar aqui, em acampamento. A chuva continua, o frio também.
A direção decidiu fechar o edifício até amanhã, mesmo para os alunos que estavam no interior a estudar.
Um novo dia
Chega a manhã, e com ela algum sol, tão esperado. O novo dia traz também alguma esperança. Uma docente da FCUP traz bolo aos ativistas, e expressa o seu apoio, dizendo que gosta “de ver os estudantes a exprimirem-se”.
Já saíram várias notícias sobre a ocupação, e chegam mais jornalistas hoje, com perguntas para os ativistas.
Nas redes sociais, há uma onda de apoio, e novas pessoas chegam para se juntar ao movimento. Trazem com elas sacos com mais comida e água. O almoço é partilhado por todos no jardim, onde o grupo se mantém. O regresso ao interior do edifício não foi permitido aos ativistas.
Ao início da tarde, forma-se uma roda de conversa, em que se partilham experiências de outras ocupações, em que alguns dos presentes tinham estado. Uma delas é a ocupação da escola da Fontinha, em 2012, no Porto. Recordam esses momentos de forma emotiva.
Foi também espaço para expressar o que se sente relativamente à ocupação que se está a fazer aqui na FCUP. “Estou muito orgulhosa do que estamos a fazer aqui, de estarmos a pensar no bem comum, ver toda a gente tão empenhada e organizada. É lindo e tão bom de ver”, diz Ana Torres, uma das civis que se juntou à causa. Seguem-se aplausos do grupo.
O apoio chega do exterior
Às 15h15, dois docentes da Faculdade de Letras chegam para demonstrar o seu apoio aos manifestantes. “Eu venho, evidentemente, em solidariedade com os estudantes que ocupam a Faculdade de Ciências”, diz Manuel Loff, professor de História que faz parte de um “grupo de docentes e investigadores que está a produzir uma carta aberta para enviar ao reitor, com basicamente as mesmas reivindicações que os estudantes têm manifestado em Portugal e por todo o mundo”. Loff refere ainda que este se trata de “um movimento que tem que ser alargado” e elogia o “laço internacional de solidariedade com o povo palestiniano” que se tem unido “desde outubro de 2023 perante a limpeza étnica em curso em Gaza e aquilo que é a demonstração muito prática de uma vontade genocida explícita e deliberada do estado de Israel”.
A estas declarações, registadas em vídeo e publicadas nas redes sociais da organização do protesto, junta-se João Teixeira Lopes, professor do departamento de Sociologia, para quem esta é “a causa do século XXI até agora” e que defende que “é fundamental que lutemos todos pela causa palestiniana. Estudantes, professores e, claro, pessoas fora da academia.”
Chegam as cinco da tarde, e reúne-se uma nova assembleia. De acordo com os organizadores, o balanço até agora é positivo no que diz respeito ao apoio exterior, tendo o grupo já recebido várias doações, quer monetárias, quer em géneros, durante a tarde de hoje.
A organização apela ainda a que se mantenha o espírito de companheirismo e entreajuda. “Mantenham-se unidas e cuidem umas das outras”, diz uma das moderadoras da assembleia.
É ainda informado a todos os presentes que até agora não houve nenhuma comunicação direta com a direção, apenas com a intermediação do segurança do edifício.
Uma chamada além fronteiras
É fim de dia, mas o horário de verão ainda permite que haja luz do sol. Sentados na relva, entra-se em videochamada com Maria, uma palestiniana nascida em Nazaré, e com alguns dos estudantes que estão no movimento de protesto estudantil em Lisboa. A comunicação é estabelecida em inglês.
Maria conta como é ser uma palestiniana com cidadania israelita, a história do Nabka e de que forma isso afetou e continua a afetar a sua família. Explica que ter as opiniões que tem e estar ali a conversar connosco, sendo uma palestiniana que vive entre israelitas, no norte do território, a pode colocar em perigo de “ser presa”. Confessa que o seu maior medo é “ir parar à prisão”.
Agradecendo a ação dos estudantes que tentam que as suas universidades cortem os laços que mantêm com as instituições de ensino em Israel, explicando de que forma a academia israelita está envolvida no conflito. “Israel é uma máquina de produção de armas. A academia israelita está diretamente envolvida na produção de armas usadas no Líbano, na Síria e no genocídio na Palestina. Usam-nas e depois são vendidas no mercado como armas experimentais.”
Quando questionada sobre o que mantém o povo palestiniano a continuar a sua luta, Maria explica como esta luta “já tem vindo a ser feita por quase um século. A esperança tem sido uma ferramenta para continuar a lutar. Nós temos esperança numa Palestina livre”.
O que falta ser feito
Um dia inteiro se passou, e o movimento de protesto continua. Ainda sem resposta por parte da direção, o grupo de ativistas diz que irá continuar aqui até que as suas reivindicações sejam atendidas.